terça-feira, dezembro 09, 2014

Caminho a Fisterra - Dia 3

Dia de chegar ao km 0 do Caminho, o "Finis Terrae", como chamavam os romanos, "Fisterra" para os galegos. Percurso muito agradável, sem fugir muito da beira-mar, mas sempre a subir e descer, logo desde Muxia. Saímos da Igreja da Senhora da Barca, já quase recuperada do incêndio que quase a destruiu na totalidade, e com um átrio novo, melhorado. 
Dia feriado também por cá, e assim, com o Posto de Turismo fechado, não havia onde levantar ou pedir a Muxiana, certificado do Caminho até ali. Não era dia de certificados fáceis, como iria compreender mais tarde. 
Aos 10 km alcançamos um britânico alto e magro com origem indiana e nome português. O "da Cunha", jovem nos 20 e algo, que diz viver as vitórias da nossa selecção como se fossem dele, fez todo o caminho francês, desde perto de Lyon - 1500 km - do dia 7 de Outubro até hoje. Diz que a tradição de queimar roupas em Finisterra será pela quantidade de pulgas que se apanham nos albergues "provisionais" espanhóis, que se revelam maus, mas baratos, ao contrário dos franceses. 
Tal como nós, espantou-se com a verde Galiza, que comparou à Irlanda, e com a falta de gosto da construção, que com nada se compara. Do mal o menos, são gente simpática e hospitaleira. Fomos juntos até aos 15 km, onde o deixamos sentado ao balcão de um bar e só o voltamos a ver ao final do dia. 
Seguimos caminho, que amigo não empata amigo, e fomos ultrapassando gente de outras latitudes. Um japonês que mancava, uma espanhola que fumava, e um casal sentado no chão do trilho, divertidos a imitar macacos. Dali a Finisterra, que não dista mais de 3,5 km do verdadeiro fim, fomos a passo de caracol, para fazermos render o dia. 
Finisterra tem falta de pão, mesmo nas padarias, e o autocarro para Santiago percorre toda a Costa da Morte, num ziguezague constante e com paragens em todas as freguesias. 3 horas que custam imenso e que não repetirei. Um habitante de Finisterra, disse ser mais fácil e cómodo apanhar o autocarro para A Coruña e aí fazer transbordo para Santiago. Poupa-se uma hora e o enjoo das curvas. Tanto foi o enjoo e a pressa de sair da camioneta, que nos esquecemos lá dos certificados Finisterranos. Paciência. Os km, 124, e o Caminho ninguém nos tira. É isso que nos fica na memória. E é isto, toda esta vivência, que nos faz ter vontade de voltar quanto antes.


- Início do Caminho em Muxia


- Igreja da Senhora da Barca, ao fundo. Muxia. 


- Finisterra. Início de um mar revolto e belo, a perder de vista. Belo lugar para o km 0. Havemos de voltar ao km 1, só temos de escolher o dia e lugar. E regressar a Finisterra, que mais parece um início. É na simplicidade que se vêm os grandes trajectos. 



Ultreya!






domingo, dezembro 07, 2014

Caminho a Fisterra - Dia 2

Hoje chegamos a Muxia. Muxia é passagem obrigatória para quem vai a Finisterra, onde os romanos pensavam estar o ponto mais oriental - o fim - da Europa (hoje sabemos que é o Cabo da Roca), e até onde peregrinam os caminheiros,  depois de passarem por Santiago para se despojarem de roupas, calçado e selar o epílogo da viagem que replica a do Apóstolo Tiago. Não reza qualquer lenda que São Tiago (ou Jacques em francês, ou James em inglês) tenha alguma vez ido a Finisterra, mas diz que a Virgem se deslocou a Muxia num barco de pedra, para o animar na sua peregrinação. As pedras da barca teriam ali ficado e terão poderes curativos. São essas pedras, que se movem mas que ali persistem há séculos, que servem de átrio à Igreja das Barcas, ali edificada.
História e estórias à parte, a história desta etapa e dos mais de 46 km, é uma réplica do primeiro dia relativamente à paisagem, mas um retrocesso gastronómico. Hoje não tivemos quase onde comer. Depois de um início auspicioso, aos 13 km, em Oliveiroa, com um café acompanhado de "Biscoito típico", anunciava o taberneiro (afinal era só uma fatia de bolo de laranja), um desagradável - para nós - acontecimento encurtava-nos drasticamente a hora de almoço. Com 25 km corridos e um buraco no lugar do estômago, entrámos no primeiro café com aspecto disso, em Dumbria - Capital de Concelho. Cheio de gente, sentámo-nos na única mesa vaga. Tirámos as mochilas, já que prevíamos ali ficar pelo menos 1 hora, e aguardámos o camareiro. Aparece-nos um jovem com avental, mesmo com pinta daqueles novos cozinheiros saídos do "Masterchef". Imaginei logo um menu especial - umas sandes de 1 metro, ou as melhores vieiras ainda a 20 km de Muxia. Mas nada disto se confirmou. Afinal, o jovem vinha-nos convidar a sair, porque era Domingo e já passava da hora de fechar. Perguntamos onde havia outro restaurante, respondeu que nada antes de Quintáns, a 11 km. Já só saíamos dali com força bruta, não íamos fazer aqueles km todos com fome. 
Depois de muitos pedidos e de explicarmos que não estávamos de bicicleta, mas a pé, lá nos deram o pão saloio que sobrara (p'raí 1/2 kg), com queijo e presunto, e um prato com pedaços de tortilha de batata que até parecia petisco Masterchef. Entre um preço envergonhado que nos fizeram e duas latas de Coca-Cola, explicaram-nos que tinham uma celebração em casa, e que aquela gente toda que enchia o café, eram família que aguardava o almoço que marcaria os 90 anos da matriarca. Quase nos fizemos convidados, mas havia caminho para fazer. 
Dali a Muxia foi... Não, não foi um tiro, que este caminho não é de velocidade. Foi mais um serpenteado em passo de caracol, a poupar o esqueleto, que amanhã há mais. 
De referir que o primeiro café que vimos aberto, foi a 5 km de Muxia. Íamos penar e passar fome. Assim só penámos. 
Ao Caminho! Ultreya!


Hospital - pequena localidade onde se opta por ir directo a Finisterra, ou por Muxia.


Despojos de peregrinos. Juro que se tivesse uma catana para cortar aquela vegetação à volta dos pneus, teria-o levado. 


Oliveroa - Um mural pintado na parede de um Albergue, com uma discreta frase escrita a lápis que diz "Sê tu próprio". 


Caminho bonito, agradável e sereno. 




sábado, dezembro 06, 2014

Caminho a Fisterra - Dia 1

Vou começar pelo fim: 
Casa Pepa, fixem este nome, como nós fixamos, ainda faltavam 21 km para lá chegar. Tem a melhor sopa de lentilhas do Caminho, e excelentes instalações para repousar. Foi-nos indicado na Cervejaria Esmorga, em Negrera - onde servem "bocadillos" de 40 cm -, depois de ter ligado para outras duas alternativas, que estavam encerradas, e quando já ponderávamos ficar ali, devido ao adiantado da hora. Tínhamos saído de Santiago já depois das 10h, tínhamos que arranjar alternativa antes de cair a noite. 
Este Caminho de Santiago a Finisterra é um infinito ondulado verde, raramente pincelado por casas, umas pirosas, outras tradicionais de pedra granítica, mas muito rural. Duro qb, (hoje, em 42 km acumulamos 2.000 mt), bonito e muito bucólico. Pouca "civilização", muita dela concentrada nesta Casa Pepa, um albergue muito bom, com tudo o que é civilizado, a 11 km de Oliveroa, em Santa Mariña.  
O mês de Dezembro tem pouco movimento de peregrinos, que nos proporcionou um caminho calmo, silencioso, propício à contemplação das cores da imensa natureza que abunda na Galiza, e de divertimento nos excelentes trilhos tão bem cuidados, onde se pode correr calmamente. 
Ruído só mesmo o dos corvos, ou o nosso a clamar pelo fim de mais uma subida. 
Pouco ruído no Caminho, mas de sobra no bréu do Albergue, que partilhamos com o José, bicigrino venezuelano que não usa telemóvel, não se lembra quando começou o Caminho francês - "talvez há um mês" -, e que ronca mais que todas as Zundapps cá da terra. O barulho veio depois da luz apagada. 
E pronto. Agora vamos pôr os tampões nos ouvidos - indispensáveis para quem se mete ao Caminho - e tentar recuperar forças para mais 42 km amanhã, para chegarmos a Muxia. 
Ao Caminho!


- À saída em Santiago


- Bocadillo enorme e bom!


- Ai que rica sopinha! 


- O José, que também tem um blogue, mas mais rudimentar, ainda a caneta BIC. Escreve todos os dias, mas não põe datas. 

terça-feira, outubro 21, 2014

UTAX 2014 – Então não era eu e o trilho?


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Promessa não cumprida. Não fui eu e o trilho.

Vou eu em dia de aniversário para Castanheira de Pera em busca de uma promessa feita em modo de claim, e o que é que me sai? Uma prova. Não fui e o trilho. Não fui sequer eu e o filho da #%$”& do trilho, como cheguei a comentar com o Tiago Santos algures a meio de uma descida que mais parecia uma pista de saltos de esqui; não, fui eu e uma pipa de gajos no meio de uma serra.

Então era eu e o trilho, e sai-me uma catrefada de gente numa praça com luzinhas na cabeça, impermeáveis vestidos (sim, chovia) equipados a rigor, alguns até com bengalas próprias de trilhos, e havia até marcações?

Então era eu e o trilho, e fiquei logo num engarrafamento na primeira incursão num trilho?

Então era eu e o trilho, e havia abastecimentos, alguns até com sandes de chourição e num deles tinham um panelão de sopa?

Então era eu e o trilho, e fartei-me de ver bombeiros a tratar os pés de outros que lá foram em busca da emotiva máxima “Tu e o Trilho”?

Desculpem, mas o UTAX tem pouco de “Tu e o Trilho”.

Eu e o trilho foi só quando tive de me sentar a meio da subida para o Santo não sei quantos das Neves, que nunca mais aparecia no nevoeiro, e tive de sacar de uma das minhas 12 barras que levava na mochila e comer. Parecia um verdadeiro “survivor”, não fosse a embalagem. Ou quando mergulhei a cabeça nos ribeiros para me refrescar, ou quando enchi os cantis nas cascatas, bebi das levadas e comi castanhas tiradas de ouriços que estavam pelo chão.

Eu e o trilho, foi quando me deu vontade de pendurar o Tiago Santos numa árvore, quando ele desatou a cantar cantos líricos.

Eu e o trilho, foi quando me doíam os pés e subia mais rápido do que descia.

Eu e o trilho, foi quando acabou um frontal e tive de tirar o suplente da mochila. Ou quando precisei de repelente de insectos, ou quando precisei de vaselina… Tudo isto é trail. O que não é trail é ver o lixo que muitos dos pseudo atletas vão deixando pelo chão, ou ver papel higiénico usado a boiar num ribeiro. Isso já é uma espécie de turismo pago em zonas de risco, com bombeiros para dar assistência. Já tem pouco de trail.

Por isso gosto cada vez menos das provas massificadas, salvo raras excepções, e cada vez mais procuro provas longas, onde os aventureiros têm noção da aventura onde se metem. Porque ver um perfil de uma prova é antes de ver os km, ver a altimetria, ver os abastecimentos, mas principalmente – e é o que muitos descuram – saber se temos capacidade para reagir a qualquer imprevisto.

Afinal a história do “És tu e o trilho”, era um aviso de que o UTAX é trail a sério. E trail a sério, é quando não sabes se 1 km te vai demorar 10 min ou 1h a percorrer. É quando não sabes se vais trepar cascatas, descer pedreiras, ou subir durante horas km a fio. Isto é trail. Trail é selvagem, não tem abastecimentos. Trail é orientarmo-nos pelo topo das serras e ir de uma a outra pelo caminho que for possível. Trail é caminhar, correr, saltar, andar dentro de água ou dormir numa gruta. E para tudo isto temos de estar preparados.
Prova de trail é tudo isto, mas com abastecimentos, atleta vassoura, classificações e possibilidade de resgate mais rápido. Mas para irmos a uma prova de trail temos de contar apenas connosco e com o trilho marcado e limpo (poucos sabem, mas é o que dá mais trabalho).

É curioso, que as provas que mais polémica geram entre os participantes, são as provas realizadas nas serras onde mais dificilmente o ser humano chega – Freita, Estrela e Lousã. Curioso também, é que são poucos os que se atrevem a treinar por aquelas bandas, e os que o fazem são dos melhores atletas de trail do pelotão nacional.

Resumindo, o UTAX continua como era, uma prova dura, ainda mais dura pelo upgrade de distância e desnível, e feita a pensar no trail.

Agradeço a simpatia de toda a UTAX Team. O abraço que dei ao João Lamas no final é extensível a todos sem excepção, bombeiros e populações incluídas.

Obrigado ao Tiago Santos por me aturar toda a prova, e ao Pedro Rodrigues pela companhia depois dos 60 km. Aos companheiros de viagem Sérgio Moreira e Pedro Moreira, um abraço sentido e um obrigado pela companhia, vossa e das vossas Marlenes. Havemos de repetir.

À Lousã, um até já. Tenho que ir aí treinar, para ser mesmo eu e o trilho.

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segunda-feira, outubro 06, 2014

Maratona de Lisboa 2014

 

Meus caros. Este não é um blogue de corrida. Este blogue é definitivamente um blogue diferente. Aqui não vão encontrar planos de treino, nem dicas de nutrição, estratégias a adotar para aumentar os vossos desafios, ou equipamentos mais ou menos adequados para o conseguirem.

Até há pouco não pensava chegar onde cheguei ontem. Há um ano, em Sevilha, tinha finalmente, à 8ª tentativa, conseguido baixar das 4h à maratona. Na Maratona do Porto repeti a façanha (e o tempo, 3h57). Ontem tirei 20 minutos a este máximo. Como consegui? Seguindo a estratégia mais indicada para melhorar no que quer que seja: Praticando. Quem quer escrever bem, quanto mais escrever, melhor escreve; para ler bem, igual. Para se ser bom cozinheiro não se pode deixar de praticar. Para se correr melhor, o ideal é praticar. Exatamente como qualquer outra atividade. Com calma, paciência e prática, ficamos melhores.

Recordo-me de, há uns anos, na 1/2 maratona de Cortegaça, ouvir uma amiga comentar com outra pessoa, que apesar de uma noite de pouco sono e muito gin, tinha retirado quase 10 minutos à sua melhor marca. E não era uma marca qualquer, foi descer de 1h48 para 1h38. Já nessa altura pouca velocidade treinava, e já nessa altura ganhava aversão a planos de treinos e cuidados a ter para melhorar na corrida, pelo que aquilo me soou bem. Um dia, conversava com o treinador de uma atleta olímpica, que soltou uma gargalhada quando lhe disse que fazia séries. Aconselhou-me a correr muito, sem forçar velocidade; essa viria com a prática. E tem sido assim.

Apesar de todos os conselhos que vemos por aí, de todas as dicas que seguimos ao pormenor, dos planos “xpto”, para o tempo “X” à maratona, da suplementação, nutrição, descanso, equipamento… Muitas vezes tentámos e nada nos sai. Ou então somos mesmo predestinados e sai à primeira ou à segunda, e aí sim faz sentido treinar afincadamente para andar no top. Não é o meu caso. E se não é também o teu, esquece as revistas da especialidade, o site da marca “X”, o nutricionista, o personal trainer, o equipamento de compressão, os géis para a prova (há gente que leva cintos tão carregados que parece que vai para a caça) e o plano da corrida. A estratégia para ti só pode ser correr, correr e correr. Se gostas de correr, esquece os sacrifícios que vão para além da própria corrida (estou a comer croissants de chocolate enquanto escrevo este texto). Se não tens aspirações superiores às de conseguir correr, ou à simples compensação para a saúde da prática da corrida, esquece os pormenores e não desistas. Calça umas sapatilhas e corre. Não vais precisar de grandes cuidados quando chegares à altura em que correr será parte da tua rotina, como sentar no sofá, à mesa para comer ou ir à casa de banho. Não vais morrer por correr. Vais viver melhor com a corrida. 

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Toda a gente fala em planos de treino, estratégias, alimentação e outras lenga-lengas. Fará todo o sentido para quem quer ser profissional da corrida. Tal como qualquer outra profissão, a especialização exige regras.
Vou-vos dizer qual foi o meu plano de treinos. Nenhum.
Plano alimentar: Nada.
Pequeno almoço no dia da prova (calhou 2 horas antes): Leite com chocolate (sim, sim, o leite é de difícil digestão e tal…), 1 croissant de chocolate (muitos croissants como eu), pão saloio torrado com manteiga. Levei um gel para a prova, mas bebi-o antes. Bebi 1/2 litro de chá de limão durante a viagem de comboio para a partida.
Estratégia durante a prova: Colocar um pé sempre depois do outro e divertir-me naqueles 42 km entre Cascais e a Expo, com uma incursão pela Baixa pombalina. Passei o balão das 4h15 aos 8/9 km, o das 4h aos 20 e o das 3h45 aos 28. Não apanhei o das 3h30. Comecei devagar (passei à 1/2 maratona com 1h56, aos 10 tinha passado com 57’) e fui sentindo o corpo e as sensações. Sentia-me com pouca força mas lá fui seguindo pessoas que achava que iam com o meu ritmo, de preferência as mais lentas. A partir dos 20 km, já pouco importam os outros, basta ouvirmos o nosso corpo, sem olhar para o relógio.
Equipamento: Meias das mais baratas (compradas de véspera), umas sapatilhas com mais 2000 km (lá se vai a teoria das marcas), calções básicos de marca branca e t-shirt da última prova organizada por amigos que fiz. Ah! E proteção nos mamilos, que acabar uma maratona cheio de sangue não é bonito.
Falta dizer o que fiz nas semanas anteriores. Pouco descanso, muitos km, pouca “dieta”, fui-me mantendo feliz ao olhar para os pratos que me iam caindo à frente, vinho q.b. (muita água, que os músculos precisam dela) e correr sempre para recuperar. Descansar a correr, nem que seja preciso correr a 6’/km ou a 7’. Sexo, sempre que se proporcionar, sem restrições.

Este “ensaio” que fiz não é científico, até porque a amostra unitária não o certificaria, mas as pessoas que conheço que mais correm, melhor correm e mais rápido o fazem. Conheço quem tenha feito há 2 semanas mais de 150 km (eu só fiz 105), tenha também ido à Arga e feito os 53 e ontem tenha feito 3h10 na mesma maratona (parabéns Paulo Gomes!), e na semana anterior às 24h tinha feito 80 no Douro (trail, claro) e a 1/2 maratona do Porto no dia seguinte. Se acham que correr muito prejudica os tempos na maratona… Nem sei que diga.
O meu amigo Luís Pires é outro excelente exemplo desta teoria, de que correr muito melhora o desempenho; no ano em que chegou às 100 maratonas (2013, portanto) e que fazia maratonas ou ultras todas as semanas, foi o ano em que mais vezes esteve próximo de baixar das 3h na maratona de estrada (várias entre as 3h e as 3h10). Há quem diga que se se tivesse dedicado a um plano de treino, durante 3 ou 4 meses, talvez tivesse baixado. Pergunto, teria desfrutado tanto? Teria tirado todo o prazer que queria da corrida? Não creio.

Enfim. Tudo isto para concluir o que já escrevi várias vezes. Quanto melhor integrarem a corrida na vossa vida, sem a alterar muito por isso, mais vão desfrutar deste fantástico desporto, que é tão democrático como respirar e que está disponível para quem o quiser praticar. Basta calçar umas sapatilhas, o resto, vem com calma, sem pressão. Assim sim, é ser amador e correr por puro prazer. E acreditem, que enquanto olharem a corrida como uma coisa em que todos os predicados dos profissionais se aplicam aos amadores, ela vos vai desiludir mais do que agradar. Desfrutem da corrida, não vivam para ela. 

sexta-feira, outubro 03, 2014

Grande Trail Serra d’Arga 2014

 

SerraD'Arga

Nós, os corredores, somos o grupo de pessoas que melhor manipulam dados. Só somos superados pelos políticos. Se temos 4h05 na maratona, dizemos ao leigo, aquele que pouco percebe do assunto, que temos à volta de 4h. Se fazemos uma prova com 2675 m de acumulado positivo, disparamos logo a coisa para “mais de 3.000, e muito técnicos”. Somos uns valentes. E somos mesmo.

O Carlos Sá é um dos valentes, mas valente à séria. Faz séries na subida do Cerquido, aquela subida entre o abastecimento do km 25 e os 30 da Sra do Minho, onde este ano o Ricardo Taxa tocava uma gaita que se ouvia desde os 20 km, antes da descida que havia de moer os joelhos, tornozelos e quadrícepes, a todos os que achavam que era um voo divertido. O GTSA é uma prova dura, pouco apropriada a voos. O Carlos Sá desenhou-a dura, mas acessível; tão bela quanto castigadora.

Lembro-me da 1ª edição, que havia de ser interrompida (graças a Deus) aos 21 km, devido ao mau tempo. Da 2ª e do calor abrasador que nos sovou, e da 3ª, que todos lembram pelo dilúvio que se abateu sobre o Minho, e que fazia com que a Serra d’Arga parecesse um copo a transbordar sob uma torneira que não fechava, onde o chão era um rio imenso, e o céu um intenso nevoeiro sebastianista que não dispersava. Este ano tudo foi diferente. Houve sol, mas não muito forte. A meteorologia colaborou, finalmente.

Na semana anterior havia feito 105 km nas 24h de Vale de Cambra. Os treinos durante a semana foram apenas de recuperação (trotes ligeiros, não mais de 12 km), a pensar na trepa de 53 km que o Carlos Sá havia desenhado. A novidade desta edição, além dos km passarem de 47 a 53, era a de a prova ser feita em sentido inverso, com chegada a S. Lourenço da Montaria aos 33km, onde acabava o trail longo, ponto de partida do trail curto (20 km), e de transição da distância Ultra. O Pincho viria pouco mais à frente, uma fantástica maravilha que leva o Rio Âncora de queda de água em queda de água, por piscinas naturais, num azul turquesa a que é impossível resistir. Passei numa delas, sob o olhar pasmado de uns elementos da GNR de montanha (por ali por segurança dos participantes), mais de 30 minutos, num grupo que se foi avolumando e que mais parecia de uns domingueiros a quem só faltava a lancheira. Dos 33 aos 45 km um fantástico serpenteado junto ao rio, que aqueles que ficaram pela distância intermédia não puderam desfrutar, mas que foi servido pela manhã aos que fizeram a distância curta. A coincidência de o grosso do pelotão passar ali durante a tarde, é um upgrade fantástico, e que por si só, justifica acelerar nos primeiros 33 para poder passar o controlo antes do tempo limite (6h30, os que excediam eram classificados no trail longo).

Pincho

Ora, com tantos km na semana anterior, não podia aspirar a mais do que saiu, uma prova calma, em 9h40, que me pôs os quadrícepes aos “gritos”, mas que é um mimo para a alma.

O Grande Trail Serra d’Arga é a prova onde qualquer um se pode e deve iniciar. É uma espécie de Mont Blanc (onde nunca estive) à portuguesa, onde se olha para o trilho, seja para trás ou para diante, e se vê um carreiro de cores, monte acima, monte abaixo, não fossem aos milhares o número de participantes. Apesar de muitos atletas, não houve atropelos, tudo funcionou bem, desde o estender do pelotão num primeiro km dentro de Dem, até ao excepcional tratamento nos abastecimentos e ao incrível trabalho dos fotógrafos. Este sim é um trabalho que deve ser realçado. Não houve um único atleta sem uma foto na Arga. Trabalho louvável de um grupo de profissionais da melhor estirpe, como prova a foto que ilustra este texto (autoria do Eduardo Campos).

Sobe

A Serra d’Arga é um hino ao trail. Há imensos trajectos que podem ser utilizados todo o ano, com calma, em segurança, com a companhia da vida selvagem, e com o benefício do ar puro da serra tão perto do mar. O Pincho é um destino a não perder. O GTSA, para quem gosta de trail, uma festa a repetir. T-shirt e meias técnicas no kit do atleta, colete de finisher, boa gastronomia, não falta nada.
Obrigado ao grupo com quem partilhei o fim-de-semana, ao Meixedo, que nos acolheu em Lanheses, ao Vítor Dias, Miguel Santos, Marta Lopes, Ivete Carneiro, Patrícia Leite e Luís Pires, e claro, à Susana, que acabou com brio os 33 km, apesar de uma arreliadora bursite no joelho, e que a impediu de terminar a prova grande. Fica prometida uma ida ao Pincho, para uns merecidos mergulhos no Rio Âncora, num ambiente mais romântico e menos competitivo. É que o trail dá para tudo Piscar de olho

Quanto ao calendário, venha daí o UTAX e a bela Serra da Lousã, com os seus 109 km e o imenso verde que a caracteriza. Este Domingo vou fazer um treino longo.

quinta-feira, setembro 25, 2014

Estranha forma de vida

 

1ª Edição 24h Portugal – Vale de Cambra

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O ser humano é uma espécie estranha, dominado por sensações químicas que o impulsionam a fazer coisas que mais nenhum ser vivo faz. A corrida de resistência é uma dessas loucuras que alguns de nós fazemos, e que muitos dos outros, os que não correm, não entendem. É sofrer por prazer.

Há uma estirpe de seres que se divertem a superar desafios, a ultrapassar metas que outros acham irracionais. Eu faço parte deste grupo cada vez maior de homens e mulheres que acham que os impossíveis não são mais que desafios mais ou menos complicados, onde a maior questão é o tempo que demorarão a concluir.

Há algum tempo que tínhamos em mente, eu, o João Meixedo, Vítor Dias e Miguel Santos, ultrapassar a barreira dos 3 dígitos numa prova de corrida. Entre outros desafios que fomos superando, fossem as duas idas a Santiago em 5 etapas de distâncias superiores à maratona, fossem as diversas provas de ultra trail de distâncias intermédias, fomos desenhando, por ideia do João, uma ideia de uma prova de 24h a correr. 24h, porque é normalmente o tempo limite atribuído para concluir a distância, e porque são habituais pelo mundo fora as provas de resistência em circuito ou em pista, e porque seria uma forma acessível (embora igualmente dura, 100 km são muitos km), de qualquer pessoa que quisesse atingir tal número, se pudesse aventurar, num local onde de forma segura poderia gerir a sua prova.
Da ideia surgiu o 24h Portugal, e deste, a enorme empreitada de por de pé uma exigente organização, para que nada faltasse. E nada faltou ou falhou. O João Meixedo e o Vítor Dias, conseguiram entretanto levantar barreiras, transpor obstáculos e dispor meios para que a ideia resultasse em pleno.

Sábado foi o dia D, já com uma arena digna de organizações profissionais, onde nada faltou, desde a tenda de descanso dos atletas, ao imenso espaço relvado para acampar, passando pela tenda principal, onde de hora a hora eram afixados os resultados, e onde os atletas, familiares e público confraternizavam enquanto abasteciam os petiscos e massas cozinhadas pelo Miguel Santos, e servidas pelo excelente contingente de voluntários da Retorta, que em conjunto com a Câmara local foi co-organizador do evento. Nada faltou, nem nada falhou. Houve atletas a partirem com mochila carregada de abastecimentos, e que ao fim de algum tempo as dispensaram, largando lastro que só causava incómodo. Eram abundantes os abastecimentos. Havia serviço de massagens, que nem eu dispensei. Havia uma tenda/Hospital de campanha com uma equipa de emergência de prevenção. Tudo foi pensado ao pormenor, para que nada faltasse aos que se aventuraram na prova.

A prova foi corrida por atletas em solitário, equipas de 2 ou de 4 elementos, masculinas/femininas ou mistas. Em paralelo decorreu uma prova de iniciação à resistência, de 3 horas, que também podia ser corrida em singular ou equipa de 3. Houve muita gente a estrear-se em distâncias que nunca pensou ser capaz de correr, desde os 20, 25 km, até aos mais de 150 de alguns. O vencedor correu mais de 190. Houve mesmo quem conseguisse percorrer mais de 120 km quase exclusivamente a caminhar. Eu, numa equipa de 4, aproveitei a madrugada de Domingo, com a ausência dos meus colegas, e cheguei aos 105 km.
Esta foi a prova que provou (passe o pleonasmo), que só quem não foi a Vale de Cambra não conseguiu superar limites. Quem teve coragem de se aventurar, superou-se (excepto um ou outro lesionado). Parabéns a todos, em especial aos vencedores, Carla André no feminino (primeiro as senhoras), sempre a superar-se, e Andrés Vasquez na geral. Por equipas e na prova de 3 horas, o domínio foi da locomotiva Retorta. Têm uma equipa de autênticos foguetes, tão depressa correm. 

Resta-me fazer a devida vénia ao João Paulo Meixedo pela ideia, trabalho e dedicação à prova, ao Vítor Dias, que bem desempenhou o papel de Tenente, e à Retorta, que tem uma excelente equipa de atletismo e um contingente de voluntários que faz inveja a muitas organizações profissionais de voluntariado. Com esta equipa, e com a cooperação da Câmara Municipal, apoios dos patrocinadores e partners institucionais, a prova tem futuro assegurado.

Foi um fim-de-semana de superação, convívio, aprendizagem, partilha e cumplicidade. Não há no panorama das provas de resistência outra prova onde possamos permanentemente ver as forças e fraquezas uns dos outros. Durante 24h corremos juntos, os fortes, os menos fortes, os estreantes, os experientes. No circuito superiormente delineado, marcado e iluminado, íamos nos cruzando com o primeiro, conversando com o último, rindo com um ou outro participante das 3 horas, numa experiência que só assim é possível. Nunca noutra prova tive oportunidade de correr com o primeiro e último classificado ao mesmo tempo. Ali foi possível. E isso é único. Como é única esta nossa paixão de correr muito, com calma e confraternizando muito, para rirmos com o sofrimento, porque sabe ainda melhor.

É uma estranha forma de vida, esta. Mas é uma excelente maneira de nos sentirmos vivos.

segunda-feira, junho 30, 2014

Ultra Trail Serra da Freita 2014

 

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A curiosidade de quem lê estes relatos é a de retirar algo que os faça dar o passo seguinte, de se inscreverem numa destas (aparentes) loucuras. São poucos os que leem relatos de ultra maratonas para sentirem as dores de quem os escreve. Recordo-me da minha primeira participação na Freita, na prova de 17 km, em 2011. Recordo-me de ver chegar os participantes da distância rainha – os até ontem 70 km, e que serão 100 em 2015 – e de pensar por onde raio teriam andado para chegarem sem fala ao final.

Foi assim que cheguei, 16h38 depois da partida às 5h45 – Sem fala. E são poucas as palavras que vou dispensar a este relato. Fartei-me de pensar na analogia a fazer, depois da “Branca de Neve e os 7 anões” do ano passado, mas não há analogia perfeita com o que vivi na Freita e com o que vivo de cada vez que lá vou, seja em treino ou em passeio. Ainda há uma semana torci um pé no PR7, a baixa velocidade. A Freita é como um ninho de cobras, onde somos mordidos e envenenados sem antídoto possível. Fica-nos o veneno no sangue a contaminar-nos a razoabilidade e o bom senso. No início deste mês, quando pedi a um médico um atestado de robustez física para apresentar na partida das 100 milhas, disse-me que dispensava análises complexas ou mais exames, mas que só me voltaria a passar outro quando lhe apresentasse um atestado de sanidade mental. E é isto que todos os que por ali andámos somos – uns seres saudáveis mas completamente loucos por aventura, pelo mergulhar nas entranhas de uma serra que tem tudo o que nos maravilha e nos faz sentir acelerar o sangue nas veias. Subir aos 3 pinheiros e olhar para o imenso verde que transpomos para ali chegar é como tomar um potente ansiolítico. Ou anti-inflamatório, porque depois de ali chegar, apesar de tantas quedas nas pedras do rio que tanto palmilhámos, já nada dói. Aos 3 pinheiros, ou no alto da Besta – uma subida de 1 km em 50 minutos por pedras e queda de água, onde para beber bastava parar e abrir a boca. A serotonina, a dopamina e as outras substâncias que o cérebro vai libertando a cada passo, fazem-nos o favor de nos acalmar a dor que o “Traçador” (Traça a dor) José Moutinho nos proporciona a cada km.

A UTSF não é uma corrida de 70 km. É uma luta intensa contra os nossos medos, contra o limite do aceitável, contra o desgaste físico e mental. Lembrei-me várias vezes de quando jogava Monopólio em miúdo, e naqueles dias de azar, me fartava de sair o “Diretamente para a prisão sem passar pela casa de partida”. Lembram-se? No Monopólio recebíamos dinheiro cada vez que passávamos pela partida para podermos “comprar” as ruas e estações mais caras. Era um jogo de sorte que nos fazia eventualmente virtuais milionários. Não passar na “casa de partida” era um rombo na “Conta”. A UTSF é um manancial de “idas à prisão sem passagens pela partida”, e no entanto sabe tão bem. Provavelmente faz-me mesmo falta uma avaliação psiquiátrica…

Uma certeza trouxe: Voltarei sempre, para esta prova, para treinos, para desfrutar, porque ninguém resiste à Freita. Apesar de todos os treinos, e depois destas 4 participações - finalmente fiz a prova como aconselha o Mestre Moutinho, com mente aberta - por muito que lá vá, há sempre algo novo, uma dor traçada por ele, uma nova subida ainda mais íngreme, uma descida agarrado a cordas, uma transposição de rio agarrado a tipos presos por arneses a uma brutal rocha com vista para uma asfixiante queda de água… Enfim, uma qualquer maravilha que recordamos no dia seguinte sem nos lembrarmos onde nos doía o corpo àquela hora, já com mais de 50 km. E por isso voltamos. Para sentirmos toda aquela mistura de dor e prazer de superação, culminada com o fantástico mergulho nas entranhas da Mizarela e aquela final subida ao paraíso que é a meta, ao fim de 70 quilómetros de trail tão duro quanto belo e puro.

Tudo tão belo. E é quase sempre perfeito estarmos onde gostamos de estar, onde só nos falta quem mais gostávamos de ter ali ao lado. Terei de repetir o campismo no Merujal, para ir desfrutar de toda esta dureza e beleza misturadas numa serra, mas em modo de contemplação.

Obrigado José Moutinho e restante equipa, tão bem co-liderada pela Flor Madureira. A UTSF é um mergulho no mundo da aventura onde nada é o que parece, onde tudo é mais belo e mais duro. É a prova onde passamos por onde ninguém passa. É a prova que inclui passagem por aldeias abandonadas a menos de 1 km de outras, só porque para lá chegar é quase preciso ser atleta. É uma luta contra o cansaço onde cada km é uma bênção da natureza.
Parabéns aos vencedores e alento aos vencidos, uns por quedas, outros por cansaço, outros pelo tempo; insistam e persistam. Cada km na próxima tentativa é uma vitória.

Abençoada Serra. Voltarei cada vez mais vezes, e voltarei seguramente à UTSF.

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terça-feira, junho 10, 2014

100 Milhas na Serra da Estrela

 

“A vida é uma aventura atrevida ou não é nada” – Frase retirada do Facebook da Cristina Carvalho, vencedora da classificação feminina da prova de 70 km do “Oh Meu Deus” – Serra da Estrela.

Estávamos em Agosto de 1997. O último fim de semana coincidiria com o final do mês. Um amigo, apaixonado das corridas, convidara-nos para irmos à Serra da Estrela a uma prova de atletismo. Chegados à Residencial Académica na Covilhã, nesse Sábado 30 ao final do dia, decidimos ir jantar e mais tarde saberíamos pormenores sobre a tal prova de atletismo em que se podia caminhar. Claro está que não voltamos a falar de corridas. Jantamos, fomos a uma discoteca, compramos uma garrafa de whisky e…

De repente era de manhã. Tínhamo-nos esquecido de pedir pormenores sobre a prova – partida, hora, local, enfim, pormenores sem importância – mas sabíamos que havia um almoço para depois da dita corrida. Recordo-me de ter tomado o pequeno almoço já no limite do tempo disponibilizado para a refeição, com imagens repetidas sobre um carro destruído num túnel de Paris, onde viajava a Princesa de Gales, Diana, que faleceu no local juntamente com Doddy Al Fayed. Foi exactamente no mesmo dia em que fui à minha primeira prova de trail, sem sequer ver a prova. Fomos à Torre, onde pensávamos ser a dita corrida, não vimos mais que uns turistas e alguns lojistas, nenhum vestígio de corrida ou sequer caminhada. Era impensável que alguém corresse ali, não havia por onde, só víamos montes e pedras. Talvez descessem rumo ao infinito, mas, e os carros? Não se viam carros, teriam vindo de autocarro? Teriam subido? É tão inclinado e pouco propício a correr... Pouco depois conseguimos falar com o nosso anfitrião que nos indicou o local do repasto. Foi um belo almoço, a minha primeira prova de trail. Daí para a frente foi sempre a somar…,  Almoços. Mal eu sabia que 17 anos mais tarde, regressaria à Torre num dos maiores desafios da minha curta carreira de corredor amador.

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O desafio

O desafio surgiu pouco depois da desilusão na Ultra do Marão. A Susana confiava nas organizações da Horizontes, provas que habitualmente faz e que recomendava. Com a minha inclinação para me atrever nas 100 Milhas, ela nem hesitou e inscreveu-me antes de eu poder concordar ou não.
Claro que me sentia mais do que treinado para um desafio destes, apesar de o passo anterior, o passo natural de fazer uma prova de 100 km não ter sido dado, mas os 93 do Marão tinham tido um “sabor” de Ultra de 100, com os seus mais de 6.000 m de acumulado positivo e as sensações pós prova. O meu principal receio, consistia nos relatos da primeira edição das 100 Milhas do “Oh Meu Deus” – Serra da Estrela, que falavam em marcações deficientes, ausência de segurança e falhas graves na organização. Mas também haviam relatos que relativizavam as falhas, e o facto de a data da prova ter sido adiada para Junho, com a consequente menor probabilidade de condições meteorológicas adversas, ajudavam a relativizar os receios e confiar nos instintos da minha maior apoiante. “Vai tudo correr bem”, dizia. Não me restou outra coisa que preparar-me para o que a serra me destinaria, mais de 16.000 mt de desnível, muitas horas a correr e muitas contrariedades para ultrapassar.

A aventura

A Serra da Estrela, a que os romanos chamavam Herminius Mons - Montes de Hermes (Deus Greco-Latino dos pastores, também conhecido por Mercúrio) – tem uma longa história ligada ao pastoreio. As lendas sobre a estrela que nascia sobre ela remontam à pré-história, em que pequenas comunidades sobreviviam da caça e recolha de bolota e outros frutos e pastorícia migratória. Viviam nos vales e zonas de mais baixa altitude, e subiam aos pontos mais altos após o surgimento da estrela mais brilhante da constelação de Touro, algures entre o fim de Abril e início de Maio, que anunciava tempo mais ameno, degelo e melhor pastoreio.
Terá sido também esta a primeira data da primeira edição das 100 Milhas do “Oh Meu Deus”, organizada pela Horizontes há pouco mais de 1 ano, data alterada para Junho, para garantir a “colaboração” da meteorologia. Mas nem a meteorologia parecia querer colaborar, quando chegamos a Seia na Sexta-Feira. Chovia, o vento era forte e a ameaça de baixas temperaturas na Torre perigavam a realização da única prova com a distância rainha das ultras em Portugal. Felizmente não aconteceu, apesar da chuva intensa das primeiras horas de prova. Houve frio, vento, chuva e sol, para embelezar na perfeição toda aquela bela envolvente da Serra, que me acolheu durante mais de 38 horas, e em que revivi todo o documentário “Ainda há pastores?”, de Jorge Pelicano. A simpatia e simplicidade dos que ainda por lá resistem, foi-nos servida em forma de abastecimentos acompanhados por ranchos folclóricos, por aplausos saídos de um alpendre escuro, de alguém que, na madrugada, trocou o sono pelo incentivo aos que enfrentam tamanho desafio. Daria um belo documentário esta prova onde se aventuraram menos de 40 atletas. A interrupção da chuva torrencial para a nossa partida foi apenas uma benesse do S. Pedro, que logo a faria voltar, junto com um vento forte que nos impelia para trás nos trilhos mais altos e expostos. Naquelas primeiras 5 horas de prova, que chegaram para percorrer os primeiros 39 km e chegar à bela Loriga, ficamos logo habilitados à muda de roupa que viria 40 km depois, no mesmo exacto ponto. Na primeira noite corremos por levadas escorregadias, onde a mínima distração nos fazia correr dentro de água, para não cairmos no prometido vazio. A escuridão diminuía as vertigens, mas o perigo estava mesmo ali ao lado. Em grupo, com a companhia do Vítor Penetra e do Vítor Rodrigues, lá fomos divertidos com um sexagenário brasileiro que se perdia sempre que se aventurava sozinho nos trilhos. É óptimo fazer provas tão longas com companhia, preferencialmente ocasional. Não sou apologista de esperar ou acelerar alguém, mas entre abastecimentos, de noite, numa prova tão longa, não deixo ninguém sozinho para trás. Até Loriga, já com a aurora, fomos juntos. Em Loriga repousámos, aceitamos uma das imensas sopas oferecidas por um diligente voluntário, e vestimos roupas quentes para a subida de 12 km e 1400 m de desnível positivo até à Torre.
Não vi a tal estrela da lenda dos pastores, mas imaginei o esquilo Scrat, da Idade do Gelo, na sua perseguição à inquieta noz, e onde raio terá ela pousado tantas vezes para nos desvendar aquela bela Garganta de Loriga, um dos 7 Vales glaciares que rodeiam a Serra da Estrela. A subida, linda, por trilhos ainda usados por pastores, como provam as dezenas de mariolas, vai passando por sucessivos “Covões”, alguns com aproveitamento hidroeléctrico, que transpostos, deixam atrás fantásticas imagens de um imenso desordenado desenhado pelo gelo. A subida, tão bela quanto dura, deixou mossa. Reparei-a com um Snickers que a Susana me obrigou a levar, e com tomate com sal e uma sandes de presunto oferecidas por um grupo de escuteiros, e que comi junto à fogueira que lhes acalmava o frio intenso trazido pelo vento cortante dos 1700 m. Faltavam pouco mais de 2 km para chegarmos à Torre, ponto fulcral no percurso, por estar mais ou menos a meio, e por ser a principal dificuldade da prova. Atingida esta primeira meta ainda a meio da manhã, aproveitamos o excelente abastecimento, com apoio médico, para nos aquecermos e recuperarmos forças.
Da Torre a Vale Rossim, percorremos toda a envolvente da Serra, experimentamos os fofos tufos de erva e os duros pedregulhos graníticos sujeitos a fracturação que caracterizam a envolvente. A chegada à Praia Fluvial de Vale Rossim, já com mais de 20 horas de prova e a tocar os 103 km, faziam soar os alarmes nos exclamados palavrões a cada passo dado em cima das pedras redondas que rodeiam a lagoa. Eram os pés a queixarem-se do massacrante piso. Mais caras conhecidas, gente que fazia os 100 e os 70 km, alguns atletas amigos que treinavam por ali, e saímos com alento redobrado rumo ao alto do Malhão, que antecedia o abastecimento reforçado e troca de roupa e calçado de Folgosinho. Quando lá chegássemos estaríamos a apenas uma maratona do sonho. Maratona essa que duraria mais uma longa noite.

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Li imensos relatos de provas longas antes de me aventurar nesta. Não quero massacrar-vos com as dores nos calcanhares ou as bolhas na planta de cada pé. Prefiro dizer-vos que em cada dificuldade que encontramos na montanha, descobrimos mais uma força que julgávamos não ter e descobrimos mais um amigo que nunca mais iremos esquecer. Aquelas longas 38 horas e 53 minutos que passei na Serra da Estrela, deram-me a conhecer seres humanos extraordinários. Dizem que os amigos se conhecem nas dificuldades. Não deixei nenhum para trás sem apoio, recebi apoio de todos, e tenho a certeza que darei um abraço a cada um deles sempre que os encontrar. A cumplicidade da montanha faz-nos sentir parte de um clã, que apesar de não ter rituais secretos ou cumprimentos que nos identifiquem, tem a particularidade de todos sabermos que nunca estaremos sós. Acho que é por isto que sentimos sempre confiança para cada prova que começamos, pela certeza de irmos encontrar outros que como nós se desafiam confiando no apoio dos que connosco se cruzam em cada montanha. Um abraço especial aos que comigo partilharam dores, temores e me apoiaram nos trilhos: Vítor Penetra e Vítor Rodrigues, com quem fui até perto dos 90 km; Carlos Fonseca, Paulo Picão e Rui Rocha, que me acompanharam de Vale Rossim a Folgosinho, e com quem me fui cruzando antes; João Mário Rodrigues, que encontrei no início da segunda noite, e que me acompanhou enquanto pode até à descida para o último PAC. A todos um especial abraço.

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Uma prova de 100 milhas é um desafio extraordinário. É impressionante o quão longo pode ser 1 km numa prova desta natureza. Atrevi-me ao desafio sem pressão, sem noção da distância, sem receios, com “mente aberta” (como aconselha o Mestre Moutinho que enfrentemos as provas de trail) e confiante que a organização rectificaria os erros da primeira edição e tudo correria pelo melhor. Foi o que aconteceu. As marcações estavam irrepreensíveis para quem tivesse um mínimo de experiência em provas de trail, os abastecimentos suficientes e todo o apoio indispensável estava presente. Sempre que vi solicitações de auxílio, apareceu rapidamente um elemento da Horizontes. Os voluntários, bombeiros, equipa médica e população em geral, foram de uma simpatia inexcedível, tudo correu dentro do normal. Só a t-shirt oferecida merecia mais alguma qualidade, e estranhei a ausência de, pelo menos uma refeição de massa ou arroz com proteína.

Resta-me cair na realidade do epílogo desta intensa aventura. Regressando ao filme animado, A Idade do Gelo (a primeira), onde Manny queria seguir o seu caminho ignorando o bebé perdido, tendo sido convencido por Sid a adoptá-lo. Também tive a Sid, na Susana, que me convenceu que eu seria capaz de concluir as 100 milhas, e lá estava, na meta às 7h da manhã para o confirmar, depois de se certificar que eu partia e de me apoiar sempre que pode.
Como sempre, sobram personagens para fazer a analogia com a prova, mas o Diego é bem personificado, pela manha, pelo perigo que espreita, na Serra da Estrela. É o “Oh Meu Deus” de toda esta história com final feliz. A cada dificuldade transposta, vemos a Serra a ceder à nossa força, como o tigre enjoava sempre que abanavam o barco onde seguia com Manny e Sid, e, acossado pela fome sonhava comê-los. A Serra também parece muitas vezes que nos vai levar a melhor, mas com alguma diversão e força de vontade, sem ficção, com treino e juízo, também as provas de 100 Milhas, o “Tigre” na história do trail, se domam. Haja alma!

Mal eu sabia que, 17 anos depois voltaria à Serra da Estrela para fazer aquilo que não cheguei a ver em 1997, uma das primeiras edições da Transestrela, pioneira das corridas de trail em Portugal. A Estrela ficará para sempre marcada na minha vida de corredor amador. Parabéns à organização, que soube corrigir os erros. Temia a prova pelos relatos dos anos anteriores, mas posso confirmar que esteve à altura das melhores organizações. O Road Book com todos os pormenores (altimetria, km entre PAC’s e tipo de track), distribuído a todos os participantes, fossem das 100 Milhas, 100 ou 70 km, é um pormenor de elevada qualidade, bem como a medalha de finisher.

Em 2015 lá estarei, à partida para mais uma aventura. Acompanhem-me. Vale a pena!

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terça-feira, maio 27, 2014

Ser feliz no Faial

A vida é um encadeado de momentos. O momento normalmente determina o encadeado seguinte.

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Chegados à Horta, depois de um calmo e madrugador voo que nos levou a Lisboa primeiro, começou a diversão de qualquer prova de trail. Um americano – Terry Sentinella - oriundo do Alasca e finisher de provas de renome, como a Badwater, que se revelaria puro, divertido e simpático, presenteava o Mário Leal (Diretor da Prova) com o presente mais adequado a um atleta – uma bela garrafa de whiskey do Kentucky. “Tastes like honey”, diria a Amy nessa tarde, amiga que o acompanhou na sua estreia no continente europeu e na terra do avô, deliciada com o toque doce do mel a abafarem os 40º de álcool, quando nos levaram (a mim e ao Miguel) à sua “suite” (tinha wc privativo, logo…) para um rápido “shot”.
Inevitável nesta ilha é a visita ao Peter Café Sport. Não sei bem a história do dono e fundador, mas será alguém que chegou à Horta, e como qualquer um de nós se apaixonou pela paz e beleza envolventes, e que como tantos outros, por ali ficou. O nome do Bar tem “Sport”, fomos então provar o refresco que, como diria o Terry Sentinella, “it’s a funny drink; Tastes like lemonade”. E sim, tem limão e também algum Gin. O resto da tarde foi passada à procura de um restaurante de peixe, que nos levou à conclusão que são raros, à visita a uma exposição brilhantemente dirigida pelo João Melo - que a par do Mário teve a grande responsabilidade de unir todos os organismos de promoção turística e defesa do ambiente da ilha a trabalhar meses a fio para proporcionar um fim de semana de trail inesquecível-, sobre as espécies (mais que muitos milhares) da imensa diversidade que dá cor e vida à ilha (sabiam que a hortênsia, tão característica da ilha a que chamam azul, pela sua cor, é exógena? Curioso como pode vir de longe o que tanto nos virá a caracterizar). A tarde foi  rematada por plantação de árvores numa zona onde até há pouco tempo havia uma lixeira a céu aberto. A ilha está mais verde.
O dia acabou com um repousado e tranquilo jantar entre amigos de longa data e outros recém adquiridos, sendo que os de “longa data” não são de há muitos anos, mas como são do trail assim parecem, como ficam agora estes recém chegados. Somos de uma tribo estranha que se entranha.

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No dia seguinte, à hora que tinham marcado comigo e com o Miguel para irmos verificar percursos e marcações (trabalho que o João Meixedo e o Vítor Dias andavam a fazer há já 2 dias), lá estavam à porta da base de todo o evento – Hotel Horta – o Hélder e o João. O Hélder, Vigilante da Natureza, trabalhou durante mais de 7 meses com os agricultores locais, na recuperação de trilhos que haviam sido completamente engolidos pelos movimentos de terras do terramoto mais recente a atingir o Faial, em 1998, e que teve como Freguesia mais afectada a Ribeirinha, de onde partiria no dia seguinte a nossa prova. Rapidamente nos apresentamos, tomamos um café e bebemos as suas explicações sobre o enorme abalo que a ilha sofreu e que tanto destruiu naquele lugar. Muitas das casas permanecem abandonadas e quase em ruínas. A Igreja e o Farol continuam de pé mas com aspecto de edifício em ruína eminente. Cumprimentamos o “Agostinho, agricultor que melhor conhece os caminhos antigos deste lado da ilha”, disse o Hélder, antes de nos levar ao cimo de um monte que escondia um belíssimo trilho “com mais de 60 degraus”, dizia num sotaque ligeiro, – dizem que os Faialenses que são os que “melhor falam português, a par de Coimbra” – e que se revelariam mais numerosos (171, contei). Admirada a paisagem junto ao Farol da Ribeirinha, onde a Ilha perdeu mais de 40 mt de território, engolido pelo mar depois de sacudido pelo abalo sísmico, seguimos cordilheira fora, mergulhados num denso nevoeiro que nos permitia apenas apreciar até pouco mais de 100 mt. Chegados aos mais de 1000 mt de altitude, na caldeira do vulcão, nem 5 mt de visibilidade; teríamos de esperar um dia perfeito, para no dia seguinte podermos desfrutar de uma paisagem magnífica, de onde avistaríamos “o Pico, São Jorge, a Graciosa e lá em baixo a cidade da Horta”, dizia o nosso guia. O João, Geógrafo do Parque, explicava a formação vulcânica da ilha, e dizia-nos que aquele vulcão era o maior e mais recente, excluindo o dos Capelinhos em 1958, estimando a sua última atividade há uns “recentes (!) 8, 9 mil anos. O primeiro terá sido junto à Ribeirinha, onde começou a formação da Ilha, há provavelmente mais de 500 milhões. Curioso que, a ausência de atividade vulcânica e a continuação de atividade sísmica, já levaram, por exemplo, a que ilha de Sta Maria tenha perdido cerca de 10% do seu território. Assim passamos parte do dia, bebendo história e geografia de dois, já podemos dizer, dos amigos que fizemos no Faial. Como eu e o Miguel somos tanto de correr como de comer, questionamos onde seria o melhor lugar para se comer peixe. A resposta veio rapidamente com um convite para uma pescaria com o Hélder, que logo nos esclareceu a falta de restaurantes de peixe; ele é tão abundante, que “basta” ir ao mar pescá-lo. Seria o que faríamos dali a dois dias. Neste dia andávamos na Serra, na ausência de caça, e como a hora de almoço se aproximava, lá fomos os 4 à Maria Evelina (ou Café Rumo), na Praia do Norte. O João e o Hélder começaram a falar de petiscos e nós não nos fizemos rogados. Gostamos tanto daquilo que fomos lá todos os dias, excepto no dia da prova. Nesse mesmo dia, à tarde, trocamos a viagem de barco para observar as baleias, e repetindo a visita, dedicámo-nos a treinar para sermos uma, comendo deliciados a linguiça, os queijos, os torresmos de carne em vinha de alho, a salada de polvo, o inhame, o pão de massa sovada (tão bom) e a batata doce que o Rui e o Leonel nos puseram na mesa. O João Mota, que tinha chegado nesse dia, e a Susana ainda se deliciaram com uma deliciosa sopa de feijão vermelho. Uma barrigada. À noite, depois do briefing da prova e do jantar buffet servido no Hotel, ainda comentávamos os deliciosos petiscos e fazíamos contas ao tempo para voltar à Praia do Norte. Dois dias depois da prova voltei lá, literalmente a correr, depois de fazer meia volta à Ilha, mais de 29 km por estrada, onde abundam os chafariz e escasseia o trânsito automóvel. Vale a pena, como vale a pena uma descida à Fajã e uma subida à Ribeira das Cabras, onde a vista é deslumbrante.

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O dia da prova estava “de encomenda”, como se diz quando os astros se alinham e tudo é perfeito. Um dia lindo de sol presenteou-nos tudo o que a ilha tem de beleza para oferecer. Pouco mais de 45 km com subidas lindíssimas e duras, cobertas por denso arvoredo, algum estradão, muito verde, muitas vacas (que mugem de quando em vez, admiradas com tamanho burburinho, habituadas que estão ao sossego), um sem fim de voluntários em todos os cruzamentos e abastecimentos, aplaudindo do primeiro ao último (sim fui quase último) e a população toda simpática, sempre a incentivar. A Susana, deliciada pelas paisagens, andava devagar como se não conhecesse a ilha. Eu, que queria desfrutar ao máximo de toda aquela envolvente, recostava-me sempre que me espantava com o que a vista via. Demorámos mais de 2 horas a percorrer os 6 km da cratera do vulcão. Deitei-me, tirei fotografias, procurei (e encontrei) S. Jorge, o Pico e a Graciosa, até ser envolvido de novo pelo nevoeiro e ficar com aquela sensação de quem quer tirar uma foto ao por do sol, mas demora tanto que ele se põe antes de carregar no botão da máquina. É aquilo que nos leva a todos ao trail. Aquela fantástica vontade de ir mais alto para vermos mais além. A vontade de mergulhar na natureza e sermos parte dela. A vontade e capacidade de sermos parte de um mundo que ali está exatamente como deve estar: Como a natureza quer.
Os açorianos podem estar orgulhosos do que conseguiram fazer neste Mundo de ganância, onde se planeia pouco e se tenta ganhar ao máximo, sem pensar em consequências. Ali nota-se que há planeamento. O urbanismo faz-se onde deve ser feito, habitualmente longe de linhas de água e nunca em levadas, a natureza é conservada e bem tratada, o que faz com que, à semelhança de poucas mais zonas do globo, se conserve uma beleza natural imaculada. A ilha tem habitantes, não foi urbanizada nem desvirtuada a favor do humano.
Foram as 8h58 mais bem passadas em provas de trail até hoje. Num ambiente natural fabuloso, com a companhia da Susana, sempre alegre e paciente a escutar as histórias que eu tinha decorado do dia anterior e desbobinava armado em guia turístico, divertindo-se, mas que pouco se importava com a origem da ilha e que cada vez mais desejava era um ribeiro onde enfiar as pernas. Curiosamente a ilha é muito verde, mas apenas corremos numa levada, não tendo cruzado nenhum ribeiro ou queda de água. O final foi duro, muito duro, com duas subidas agressivas, uma em alcatrão, outra por trilhos desenhados com eficientes degraus, entre fajãs e vulcões. A última subida, por degraus muito desnivelados, com uma agressividade daquelas que nos fazem sentir as pulsações algures entre os olhos e os ouvidos, precedia uma descida igualmente por degraus de paus, onde os músculos “tiravam senha” para darem espasmos. Aqui só me dava vontade de rir, ao ver-me a meio de um monte semelhante a uma montanha russa, onde no lugar dos carris havia escadas artesanalmente desenhadas em ramos de faia (a árvore que abunda na Ilha e lhe deu o nome), subir fazia rufar tambores na cabeça, e os músculos  das pernas faziam um  movimento semelhante ao das colunas quando o som é muito alto. Todo o corpo se descoordenava com tanta dureza.
A parte final da prova é semelhante a correr na lua, com cerca de 1 km nas cinzas do Vulcão dos Capelinhos, ainda sem vegetação. Ao fundo ouvíamos o speaker a pedir “barulho para o Rui e Susana”; a Susana desata às gargalhadas em sprint divertido a deslizar em direção à meta com uma alegria contagiante. Não sei se por sermos quase os últimos, brindaram-nos com o melhor final que tive até hoje. Eu, que estou habituado a chegar à meta com a festa já terminada, cheguei com uma simpática moldura humana que aplaudia e gritava. Até nisto esta prova se revelou exemplar. Parabéns ao voador Armando Teixeira (extraordinário atleta e de uma humildade fora do comum) e à já esperada vitoriosa Anna Frost. Parabéns à organização que esteve à altura do desafio de fazer do Azores Trail Run uma prova de referência nacional.
Nessa noite houve jantar de gala, com entrega de prémios, discursos e atuação de um grupo de dança de Pedro Miguel (Freguesia vizinha de Ribeirinha). Tudo impecavelmente planeado.

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No dia seguinte, vivemos como locais. É assim que se conhece verdadeiramente uma terra, vivendo como eles. Fomos com o Hélder e a Dulce (sua esposa) à pesca. Saímos às 6h30 da manhã, deslumbrados com um magnífico nascer do sol, e às 8h já tínhamos 4 “Peixe Serra”, mais de 20 kg de peixe para um belo repasto em casa do anfitrião que é conhecido por ser exímio pescador e se revelou um extraordinário ser humano. Aturou o nosso barulhento e sequioso grupo até às 11 da noite. Comemos lapas grelhadas, peixe serra, ovas grelhadas, tudo regado com vinho do Pico e rematado (para “desmoer”) com um licor de banana local, que nos afinou as vozes e a disposição.

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Guardo na memória muito que não consigo descrever. Não sei que mais terá sido importante para a divulgação desta prova, se a Anna Frost, se o ultra maratonista anónimo até há uma semana,  Terry Sentinella, ou algum dos outros famosos e anónimos que lá estiveram, se o facto de se ter conseguido realizar uma prova imaculada, atendendo às limitações da ilha, com a presença de mais de duas centenas de corredores que mais não fazem agora que provocar inveja em todos os que não foram. Por mim tenho-vos a dizer, aos que não foram, que, seja para correr, ou apenas como viagem de lazer, vão aos Açores porque vale a pena. Sabem aquelas ilhas paradisíacas do Pacífico, cheias de natureza no seu estado mais belo? Estão aqui ao lado. Chamam-se Açores. Não vejo a hora de voltar. De preferência para correr, e seguramente para conviver com as suas simpáticas gentes. O Faial é um excelente ponto de entrada num paraíso plantado no meio do Atlântico.

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A Ilha do Faial formou-se a partir de um encadeado de erupções vulcânicas, de Este para Oeste, sendo visíveis várias caldeiras a partir da caldeira do vulcão central da Ilha, onde começa o Trilho dos 10 Vulcões. Sim, são mesmo 10. Este fim de semana foi um encadeado de acontecimentos que geraram momentos de plena alegria, satisfação e convívio. Fui feliz em muitos sítios, e fui-o muito no Faial. Obrigado a todos os que me proporcionaram todo os momentos de alegria que produziram tamanha felicidade.

Vivam! Sejam felizes!

quarta-feira, maio 21, 2014

Viver

O bom que tem a leitura - o gosto pela descoberta de autores que nos são completos estranhos, desconhecidos do “bruá” literário, anónimos entre famosos, mas excelentes escritores – é que podemos andar entre filmes diferentes, saltar de realizadores, argumentos e argumentistas deste teatro global que é a vida.

O teatro foi a primeira arte com movimento desenvolvida pelo ser humano, para representar e mostrar vivências. Depois da pintura, o teatro trouxe-nos história, passada de boca em boca, até à escrita e consequente registo, também romantizado, das vidas que nenhum de nós vive.

Os livros fascinam-me. Gosto de mergulhar na escrita e sentir o que sentir  o que sentiria se fizesse parte do “filme” que leio. Gosto especialmente de me sentir um observador da acção, coisa que só conseguimos se o escritor tiver essa capacidade. Como não sou milionário, vou lendo o pouco que me vai chegando às mãos. Tenho tardes inteiras mergulhado em “frames” de livros, entre estantes da Fnac, ou manhãs mergulhado nos livros da Biblioteca Municipal do Porto, em S. Lázaro, para onde gostava de fugir em dias de adolescente, quando me via sem aulas, trocando os chutos na bola pelo silêncio da sala com cheiro a madeira poeirenta. Gosto de mergulhar na história de um local que morreu depois de ter vida preenchida, gosto de romantizar vivências que desconheço. Gosto de viver.

Descobri recentemente (provavelmente será vergonhoso) um “Pessoa” que não é Fernando de nome próprio, mas que me fascina quase tanto como o outro, pela simplicidade utilizada nos pensamentos, e pela escrita, fluente e atraente, pelos pensamentos que passa e pela assertividade do momento. Porque a leitura também é momento. E o momento que vivo levou-me a sentir este texto, que abaixo transcrevo, como um remédio para mim. Porque quero viver a minha vida com (os) outros, e não viver a vida de outros como actor secundário.
Nós somos o actor principal deste filme, desta peça de teatro, neste palco.

Viver é…

Viver é uma peripécia. Um dever, um afazer, um prazer, um susto, uma cambalhota. Entre o ânimo e o desânimo, um entusiasmo ora doce, ora dinâmico e agressivo.
Viver não é cumprir nenhum destino, não é ser empurrado ou rasteirado pela sorte. Ou pelo azar. Ou por Deus, que também tem a sua vida. Viver é ter fome. Fome de tudo. De aventura e de amor, de sucesso e de comemoração de cada um dos dias que se podem partilhar com os outros. Viver é não estar quieto, nem conformado, nem ficar ansiosamente à espera.
Viver é romper, rasgar, repetir com criatividade. A vida não é fácil, nem justa, e não dá para a comparar a nossa com a de ninguém. De um dia para o outro ela muda, muda-nos, faz-nos ver e sentir o que não víamos nem sentíamos antes e, possivelmente, o que não veremos nem sentiremos mais tarde.
Viver é observar, fixar, transformar. Experimentar mudanças. E ensinar, acompanhar, aprendendo sempre. A vida é uma sala de aula onde todos somos professores, onde todos somos alunos. Viver é sempre uma ocasião especial. Uma dádiva de nós para nós mesmos. Os milagres que nos acontecem têm sempre uma impressão digital. A vida é um espaço e um tempo maravilhosos mas não se contenta com a contemplação. Ela exige reflexão. E exige soluções.
A vida é exigente porque é generosa. É dura porque é terna. É amarga porque é doce. É ela que nos coloca as perguntas, cabendo-nos a nós encontrar as respostas. Mas nada disso é um jogo. A vida é a mais séria das coisas divertidas.

Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

sexta-feira, maio 16, 2014

A bordo do Alfa Pendular

Viajo no lugar 44 da carruagem 6, num Alfa procedente de Braga que já vinha apinhado quando atracou na Estação das Devesas, em Gaia. 
Viajar em linha férrea de alta velocidade ("alta" de vez em quando) tem enormes vantagens. Para além da rapidez do comboio - pouco mais de 2h30 para chegar a Lisboa - o rápido para a Capital está equipado com rádio e é extremamente confortável. Ponho os fones e lamento não vir o moderno trem "equipado" também com educação para os passageiros. 
Estou num daqueles lugares centrais, 2 bancos de frente para outros dois com uma enorme mesa a meio, onde vão duas mulheres, uma certamente sexagenária, - apesar do cabelo negro brilhante, curto, com franja alinhada por cima dos óculos rectangulares -, a outra, loira de cabeleireiro, imensamente gorda, com menos 10 anos, mais 20 cm e sem óculos. As duas no sentido da marcha eu de costas, ao lado de um adolescente que as acompanha. As duas vociferam alto, como se o coitado do moço que aqui vai à janela fosse mouco. Mouco vou ficar eu seguramente, caso apanhe muitas companhias destas nos comboios, já que, para não as aturar, pus o volume do rádio no máximo. Para meu azar, a rádio com melhor "captura" insiste em Bruno Mars (?), Shakira e Beyoncé e outras marteladas modernas nos meus tímpanos. 
O comboio está cheio, não tenho alternativa. 
A gorda, apesar de ainda estarmos em Aveiro, com 30 Mn de viagem, já bebeu dois ice tea de pacote. Agora atira-se a um pacote de gomas enquanto limpa o suor que lhe escorre da testa, mesmo que a temperatura cá dentro não ultrapasse os 22º (27º no exterior). À fome não morrerá. 
A baixa, apesar de minúscula, ocupa mais espaço com as pernas que eu, com 1,87. O puto adormeceu. As gajas agora discutem a vida de figuras públicas (aquele é o Ronaldo) apontando para fotos de uma revista cor-de-rosa. 
Triste sina a minha. Na carruagem 5, que cruzei quando fui tentar-me refugiar no Bar, - repleto com um grupo de turistas bêbedos -, nos mesmos lugares está um grupo idosos que usam aparelho nos ouvidos mas estão calados. Devem ter viajado muito com fones no máximo e danificaram os tímpanos. 
Vou-me refugiar no wc. Afinal, está a ser uma viagem de merda. 

quarta-feira, maio 14, 2014

Eu não quero o presente, quero a realidade


Vive, dizes, no presente,
Vive só no presente.
Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede.
O que é o presente?
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.
É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem.
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.
Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas
                         como cousas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.
Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.
Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"

Somos seres intemporais.
Pessoa dizia viver sempre no presente, por não ter já o passado e por desconhecer o futuro. E depois brindava-nos com estes textos assinados por um dos seus pseudónimos, que demonstravam a sua enorme confusão relativamente à torrente de sentimentos que o cérebro nos proporciona, toldados pela razão, a que chamamos consciência, ou pelo coração, que mais não é que a vontade inconsciente, despoluída das normas sociais.

Podemos dispensar tudo o que não vemos?
Podemos dispensar tudo o que queremos?
Podemos viver egoisticamente sem olhar a quem ferimos, olhando apenas para o nosso umbigo?
Podemos. É o que fazemos.

Vivemos num presente, às vezes envenenado, outras encantado, consoante o que nos convém. Vivemos com pavor da chuva se precisamos do sol para secar roupa e com pavor do sol se precisamos da água da chuva para não morrermos à sede. Somos seres insaciáveis. Somos o que nos convém. Vivemos inquietudes que mais não são que coisas que não nos dão jeito que se passem ou existam.
Sorte a dos tolos, dos insensíveis sem consciência, que vivem à vontade dos seus sonhos, sem terem juízo suficiente para avaliar da conveniência para o próximo de qualquer dos seus actos.
Somos o que nos dá jeito com imenso jeito para justificarmos aquilo que somos.

Também tenho um “Alberto Caeiro” na minha existência. Também falo enquanto Fernando e dou lugar ao Alberto quando dá jeito esquecer a envolvente, a estrada que me guiou, os cruzamentos que escolhi.
Há uma diferença enorme entre ser o que somos, e sermos aquilo que queremos ser. O que separa estes dois estados? A coragem de assumirmos o que somos, sem pseudónimos, sem máscaras, sem meteorologia que nos condicione. É sermos egoístas o suficiente para sermos o Pessoa. As questões que nos colocarão a seguir cabem sempre numa excelente resposta, lacónica o suficiente para ser entendida: Porque sim. Porque quero. Porque a vida é minha e as consequências também.

Seremos todos felizes? Somos Pessoa com necessidade de um Caeiro? A liberdade é um conceito tão válido para uso de pseudónimos como para sermos abandonados pelo mundo por sermos quem somos. E nós somos o que pensamos.

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terça-feira, maio 06, 2014

Ultra Trail do Marão - O sonho começou de noite


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Porquê os 3 dígitos
 
Quando começamos a correr todos temos objectivos e sonhos. Há quem queira perder peso e ganhar qualidade de vida, quebrar a rotina e combater o stress ou apenas fazer desporto para manter a forma. Depois sonhamos em distâncias sempre superiores ao que estamos habituados a correr. Uns querem correr 10 km, outros 1/2 maratonas ou maratonas.
Quando comecei a correr tinha um sonho, mais simples ainda que todos estes: Correr de dia. Depois de atingido este objectivo, o de poder correr normalmente (não que estivesse proibido, mas persistia a incomodidade de, enquanto obeso, atrever-me a misturar-me no meio dos atletas; admiro os que o fazem), surgiram as provas. Primeiro de 6, 14 e 21 quilómetros.
Mais tarde, depois das maratonas e das ultras, começou a desenhar-se um novo desejo, uma prova de 3 dígitos.
Ponderadas várias hipóteses, surgiu o convite do Bruno para fazer vassoura de um dos três turnos previstos dos 121 km da Ultra do Marão. Aceitei com a condição de fazer o primeiro e assim poder prosseguir em prova, para tentar concluir a minha primeira acima dos 100 km.
Ali estava eu, depois de todas as formalidades cumpridas, alinhado com mais 74 atletas, na partida daquela que seria a minha estreia e do Marão nas ultras de trail, dada junto à belíssima Igreja de S. Gonçalo de Amarante, na margem direita do Tâmega. A chegada seria na outra margem. Muito público a assistir, uma envolvente humana fantástica, com a participação rara dos amarantinos, que aderiram em força e apoiaram todos os que partiram, depois de uma novel cerimónia de benção da
prova pelo Padre local. A mole humana duraria toda a prova, e por todo o percurso.
 
A Prova
 
Sem querer ser muito descritivo - não gosto de ler descrições de provas, nem gosto muito de as fazer - posso apenas dizer-vos que o Marão e serras cercanas, têm das paisagens mais espetaculares para trail, dos trilhos mais bonitos e das subidas mais dolorosas que conheci até hoje. Corri em paisagens de um verde imenso, pontes de madeira suspensas em árvores, densas florestas de castanheiros, levadas intermináveis que serpenteavam aldeias a despertar da bruma da madrugada, na primeira noite, rios selvagens que ladeiam as imponentes encostas do Marão já durante o dia e onde repetidas vezes me refresquei. As suas gentes são do mais hospitaleiro que existe, como comprovam as opiniões sobre os voluntários locais, do mais extremoso e simpático que vi em provas, bem como da população em geral, que nos apoiou à partida, à chegada e por onde íamos passando. O percurso delineado mostra que houve algum exagero após os 50 km, tendo o restante sido bem escolhido; aqui e ali, eventualmente devido ao forte vento de véspera, deficientemente marcado, mas em geral bonito e agradável. Não havia era necessidade de “castigar” os atletas da ultra com descidas em escombreiras de pedra solta, com pendentes superiores aos 30%. Na véspera, ao jantar, encontrei o Luís Duarte, que se classificou brilhantemente em 2º lugar, que me dizia não ser possível descer ali a mais de 3 km/h. Devo ter descido aquilo, enquanto chamava todos os nomes do vernáculo ao Bruno Silva, a 0,3 km/h. E de noite.
Quanto ao resto não me pronuncio, fiquei ali quando o meu GPS marcava 93 km, quase 7.000 mt de desnível positivo acumulado e mais de 21 h de prova. Na informação do PAC constava “Sedielos, km 74”. Ainda ponderamos, eu e o António Morais prosseguir em prova, mas um bombeiro alertou-nos para o que ainda vinha, e que o primeiro classificado tinha concluído em 8h, de dia. Os relatos que nos chegavam da meta eram de 54 km de percurso, que somados aos já feitos, iam dar nuns mais de 145 (!). Não sei hoje se os teria terminado. Sei que no dia seguinte estava quase pronto para mais 90 km com a mesma intensidade.
Dos 74 atletas que partiram, apenas 16 concluíram a prova, o que demonstra que muita coisa não correu bem. Na minha opinião, esta Ultra do Marão merece uma segunda oportunidade, assim os organizadores a saibam conquistar. Há muito para melhorar e algumas coisas não se devem estragar. Amarante merece uma prova destas, o Marão também (e vai ter outras) e Portugal tem tudo a ganhar com a inclusão desta serra no panorama do trail internacional. A par da Estrela, Gerês e da Madeira, têm condições únicas para a prática desta apaixonante modalidade.
 
O Futuro
 
A Associação de Trail Running de Portugal tem de ter um staff de certificação de provas. Tem de acabar em Portugal o hábito de se certificarem provas no “papel”. Não se podem anunciar 121 km e saírem mais de 140. Este foi o principal pecado desta prova, e consequentemente o desfasamento entre o esperado pelos atletas quanto a abastecimentos e o que acontecia na realidade. Não podem haver provas cujo percurso (incluindo tempos limite) não tenham sido aferidos por alguém com experiência comprovada, e cujos km tenham sido aferidos por um comum GPS. O Google Earth falha demasiado.
A segurança destas provas tem que ser pensada para o último dos atletas, para o mais baixo e para o mais lento, sem exageros, claro. Mas não se podem fazer saídas por zonas perigosas apenas para não repetir trajetos. Podíamos ter ido a todos os locais onde fomos no Marão, fazendo como fazem os organizadores do Ehunmilak no Txindoki: Se só há um acesso, faz-se um controlo no alto. Não há que inventar.
Os controlos falharam, houve atletas barrados no km 95 da prova (20 km depois do lugar onde eu estava), que eu tinha passado 20 km antes, no alegado abastecimento dos 60, na Sra da Serra. Como? Fácil. Não desceram à Ermida e foram em frente pelo estradão até Mafómodes. Não deve acontecer.
Tudo isto deve ser aconselhado por um staff especializado da ATRP, que os deve recrutar e formar, para haver um critério uniforme.
Como consideração final, uma palavra de apreço ao Bruno Silva e restante organização do Marão Ultra Trail: Vocês sabem que fui um dos que mais desejou que esta prova se realizasse. Sei que tudo fizeram para que desse certo. Não tomem por perdido o tempo que gastaram a erguer a prova, melhorem o que há a melhorar e peçam ajuda. Onde mais cabeças pensam sai menos asneira. Preservem essa determinação de quererem fazer melhor, mas esqueçam a ideia de fazer mais duro. O Marão e suas cercanias têm dureza suficiente. Mando por vós um especial agradecimento às gentes de Amarante, que tão bem nos receberam, e a toda a equipa de voluntários, foram sem dúvida excepcionais.
Por fim, um especial agradecimento ao Miguel Santos, cuja colaboração foi fundamental para que eu tivesse a oportunidade de continuar o sonho de dia; ao João Marinho, que se fartou de pedalar monte fora para apoiar todos, do primeiro aos últimos; à Susana, pelo fundamental apoio e constante motivação; ao Meixedo, que mesmo de longe não deixou de incentivar, e a todos, todos sem excepção com que me fui cruzando nos trilhos do Marão. Todos os que começaram este desafio foram bravos. O facto de apenas 16 terem concluído a prova demonstra-o na perfeição.
 
O que fica…
 
Emocionei-me algumas vezes ao olhar a beleza daquela serra. Não só pelas deslumbrantes paisagens, mas principalmente porque comecei a escrever esta crónica um dia antes da prova, começando pelo título, e lembrei-me em cada metro que subia naquelas encostas, de um Rui com excesso de peso, vestido de negro dos pés à cabeça, a sair de casa às 10 da noite para ir correr 3, 4 km, os que conseguisse. Lembrei-me dos mais de 50 kg que já ficaram pelo caminho, pelos milhares de km que entretanto percorri e me trouxeram até ali, ao sonho de ir sempre um pouco mais longe. Lembrei-me muitas vezes do Rui que os outros viam, porque, como alguém me disse hoje, “o Rui já lá estava, só que escondido”.
O meu sonho começou de noite, mas já viu o dia. Que o Ultra Trail do Marão saia também do breu onde se meteu. A prova merece.